Martírio no lixão

21 de agosto de 2012, às 15h12 - Tempo de leitura aproximado: 3 minutos

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Como infelizmente tenho feito nas últimas viradas de ano, no começo deste escrevi um artigo sobre mais uma dolorosa edição das tragédias urbanas brasileiras das estações chuvosas, achando que a cota anual desse tipo de desgraça havia terminado, e que só restava nos preparar resignados para as novas tragédias da próxima virada de ano. Qual o que! O Brasil sempre nos surpreende, para o bem ou para o mal. Nem bem iniciado o Outono, nova tragédia se abate sobre nós, agora no Rio de Janeiro. Mais uma vez fruto da irresponsabilidade pública, desta vez chegando ao paroxismo da crueldade em Niterói.

No artigo do início do ano pensava que o título “Crimes sob as chuvas” fosse forte o suficiente para expressar com correção a origem daquelas tragédias, sempre eufemisticamente atribuídas a São Pedro e a excessos da natureza, mas que na verdade são crimes públicos por negligência na aplicação da legislação urbanística e ambiental, e/ou na observância de recomendações técnicas competentes. No mínimo! Emocionado como a maioria dos brasileiros, iniciei o artigo de hoje pensando que a palavra crime não seria mais suficiente, seria pouco, para expressar o que ocorreu sob as chuvas de Niterói. O que pensar de um prefeito que acompanha e deixa, desde sua primeira gestão em 1989, o povo ocupar a área de um lixão da própria prefeitura, desativado apenas três anos antes? Como não lembrar dos cruéis comboios nazistas de judeus? O que pensar de um cidadão que exerce pela terceira vez a prefeitura de uma cidade – terceira vez! – e que após a tragédia vem a público dizer que “não tinha conhecimento desse risco todo”? E Niterói é uma cidade desenvolvida, de muitos recursos técnicos.

O drama do Morro do Bumba supera todas as outras dessas tragédias urbanas pois se deu em uma área cujos altos riscos de sua declividade natural foram consideravelmente ampliados pela própria prefeitura com a instalação indevida e tecnicamente incorreta de um lixão no local e depois pela omissão criminosa quando de sua ocupação. Não há como a prefeitura desconhecer; nem o prefeito, administrador da cidade por tanto tempo. Não se pode edificar em antigos lixões horizontais, e muito menos em um com aquele absurdo declive, não só pela geotécnica, mas por problemas como gases tóxicos e inflamáveis, chorume, doenças, etc.. Um crime consciente, gestado por décadas, a céu aberto.

Quando o Brasil terá administradores públicos realmente governantes, só com a preocupação de governar o bem comum? Quando o Brasil se livrará dos maus políticos que fazem do poder público um meio de vida, mais preocupados com a próxima eleição e com a ampliação de seu poder e de sua estrutura político-eleitoral? Pouco somam se o povo está acima ou abaixo do lixo. De que interessam as tragédias anunciadas se elas podem ocorrer depois das eleições e até lá render alguns votos? E se, por azar, ocorrer durante o mandato, decreta-se luto oficial e nada mudará enquanto os processos não transitarem em julgado. Sob a irônica alegação de que “as pessoas têm a necessidade de encontrar culpados” o prefeito de Niterói fez mais um “sacrifício” pelo seu povo e assumiu a culpa, como se pudesse escapar dela.

Esta tragédia absurda aconteceu em Niterói, uma das mais importantes cidades brasileiras, na região mais desenvolvida do país. Mostra a urgência do Brasil mudar o jeito de conduzir suas cidades. E parece que a hora chegou pois após esta tragédia criminosa, alguns discursos poderosos ficaram diferentes dos repetidos a cada ano, e me acenderam um lusco-fusco de esperança. Mas isso só em outro artigo.

*JOSÉ ANTONIO LEMOS DOS SANTOS, arquiteto e urbanista, é professor universitário. joseantoniols2@gmail.com