Quando a modernização ameaça o moderno

21 de agosto de 2012, às 15h12 - Tempo de leitura aproximado: 3 minutos

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Primeira casa modernista de Mato Grosso passa por reforma sob risco de descaracterização arquitetônica

Pairando sobre um tapume de madeira vulgar, a ondulante marquise agita-se continuamente aos olhos dos que transitam pela Praça Santos Dumont. Em vão… Pedestres e motoristas já não reagem ao apelo visual da fachada que abriu um capítulo importante na história cultural da cidade, mas, talvez por conservar-se tão moderna ao longo dos anos, carece do devido reconhecimento histórico. Trata-se do imóvel onde residiu a família do ex-governador José Garcia Neto, construída em 1953 pela primeira empresa de construção civil da cidade, a Construtora Comércio, conforme projeto do arquiteto Donato de Mello Júnior, do Rio de Janeiro.

Com seu tapete voador de concreto, a casa Garcia Neto pode ser considerada a primeira obra de arquitetura a trazer a leveza da linguagem modernista ao então indiviso território mato-grossense. Depois dela viriam a Escola Industrial de Cuiabá (atual IFMT), o Palácio Alencastro, o edifício Maria Joaquina e outros ícones da moderna arquitetura regional, incluindo as escolas projetadas por Oscar Niemeyer para Campo Grande e Corumbá (1952-54), tidas como precursoras do modernismo sul-mato-grossense. Não é a precedência cronológica, por si só, que confere dignidade à pequena residência cuiabana. Sua preservação justifica-se, antes, como testemunho da sintonia da sociedade mato-grossense com o clima cultural que tomava conta do país e desembocaria na construção de sua nova capital, em 1960.

À maneira dos palácios de Brasília, as primeiras obras modernistas de Mato Grosso concorreram para construção de uma identidade cultural, fundada no equilíbrio entre valores locais e universais, progresso técnico e exuberância natural. A residência Garcia Neto ilustra como poucas essa postura equilibrada diante da história e da natureza envolvente. Construída defronte ao antigo “bosque da cidade”, a casa integra-se à natureza externa sem deixar de afirmar-se como objeto autônomo. Em que pese à volumetria abstrata e ao emprego materiais industrializados, o espaço interno abre-se para o verde, para a iluminação e a ventilação naturais, de modo que o recorte na laje acima do jardim de inverno não se reduz a recurso estilístico.

Atualmente cercada de construções estranhas ao clima e ao passado cuiabano, a cinqüentenária residência conforma-se a ambos. Compensa o emprego da famigerada telha de fibrocimento, amiga do calor, recorrendo a soluções consagradas pela tradição. O rendilhado de madeira que domina a fachada principal, por exemplo, uma herança da arquitetura muçulmana frequente nos casarões coloniais de Cuiabá, filtra radiação solar e olhares indiscretos. Sem espaço aqui para comentar outras inovações introduzidas por essa moradia, como o teto borboleta, uma releitura do telhado tradicional creditada a Le Corbusier, registre-se apenas a necessidade de preservar o pouco que resta do projeto original: basicamente, sua volumetria externa.

Informados na última hora a respeito do significado histórico da obra, os arquitetos paulistas encarregados de convertê-la num badalado espaço de lazer demonstraram sensibilidade, dispondo-se a rever o plano inicial de intervir na fachada existente. Na falta de proteção legal, a conservação do patrimônio da arquitetura moderna mato-grossense continua à mercê da consciência (ou da ausência dela) de cada um. A maioria das obras tem sido descaracterizada por não contar com os cuidados de um profissional especializado. Tome-se o exemplo da Rodoviária de Cuiabá (1979), hoje tomada de quiosques, bordaduras cerâmicas e outros “enfeites” incompatíveis com o partido original; ou os jogos de cores berrantes que “dão vida” aos Colégios Nilo Póvoas e Presidente Médice, para citar apenas três antigos cartões postais da cidade. Muitos outros, a começar pela residência Garcia Neto, também reclamam reconhecimento e medidas preservacionistas condizentes com seu pioneirismo.

Professor Ricardo S. Castor